23.4.13

Salto pra a minha morte

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A manhã levemente gelada pedia uma cerveja.

Olhei para o quarto, para a bagunça invaríavel de uma noite de sexo etílico com uma desconhecida que possivelmente jamais veria novamente. Fazia tempo que não aguentava mais a presença da mulher a minha volta após o coito. Queria que ela fosse embora, se transformasse num sanduíche ou simplesmente fosse para o lado escuro da casa e ali permanecesse quieta até a vontade aparecer de novo. Coisa que normalmente só acontecia na manhã seguinte.

Decidi não tomar a cerveja. Eram 06h30 da manhã e algo de extraordinário aconteceria hoje. Algo que mudaria minha vida ou talvez acabasse com ela. Decidi não tomar a cerveja mas não contive matar o fundo da garrafa de vinho enquanto olhava para o mundo pela janela. Sol batendo, nenhuma nuvem. A música tocava no computador enquanto eu esperava o momento de subir na bike e seguir sentido o destino. Sentido metrô vergueiro a encontrar mais algumas pessoas dispostas a mudar para sempre suas vidas ou acabar com elas.

A viagem foi tranquila assim como o dia. A única coisa que não passava era a vontade de uma cerveja. O sol brilhava muito forte, muito quente, muito perfeito para uma cerveja que DEVERIA estar sendo tomada mas não estava. Aquela cerveja, pensava eu, seria meu segundo arrependimento antes da morte?

Acabo de colocar a roupa e subo no avião. A cerveja não me sai da cabeça nem mesmo quando abrem a porta do avião e meu corpo é projetado para fora. Ouço o paraquedista gritando alguma coisa sem sentido ao mesmo tempo que ouço um ruído estranho de travas quebrando. O corpo voa solitário e sem controle e tudo que consigo vislumbrar é a cara de pavor do instrutor, ainda preso ao avião, olhando-me cair sem nenhum controle, sem nenhum aparato, sem nenhum paraquedas.

Cerveja filha da puta, penso eu, devia ter tomado aquela merda e desencanar desse salto idiota.

Já que a morte é inevitável, tento curtir o momento. Abro os braços e começo a rodar. Por vezes voo olhando o chão, por ora olho para cima e vejo meu instrutor vindo a toda velocidade, no formato de bala, tentando em alcançar e salvar minha vida já meio perdida. Tento evitar aquele último filme e tento manter a calma. 

Calma que vai embora quando viro mais uma vez o corpo em direção ao chão e a noção de que estou para morrer toma conta do meu corpo. Lá no topo do céu, cair não existe, já que o impacto está longe demais. Seria como segurar a respiração e achar que você vai morrer afogado nos 10 primeiros segundos mas, depois de um minuto, começa a bater o desespero. 

Fecho os olhos com medo da morte e lá vem o famoso filme da sua vida. 

Parece um menu de DVD onde vejo os títulos e resolvo escolher “arrependimentos”. Lá está ela, a cerveja, a qual eu já sei a história e vejo os desdobramentos caso tivesse bebido. Lá também está ela. Aquela mulher que deveria ter conhecido e não conheci. 

Fecho os olhos, aperto o play e vejo a história da minha naquela última semana, ou melhor, como seria a tal se eu tivesse conhecido aquela mulher.

Era uma quarta feira de manhã quente que deixei de lado a saúde e entrei logo no carro. Som ligado, vidros fechados e o ar condicionado funcionando ao ponto de fazer meu pequeno inverno particular. Penso nela pela segunda vez no dia e, naquele momento, abro mão de toda a minha realidade. Tenho o frio na espinha, tenho a vista turvada, aquele aperto no peito de quem sabe que o fim está próximo, mais próximo do que jamais esteve.

Quebro uma rua a esquerda causando a queda de um motoboy e o grito de uma velha e sigo sentido Zona Oeste com aquela ideia fixa na cabeça de que a loucura, nesse exato momento, é a coisa mais sã a ser feita. Sigo no ritmo frenético cortando o trânsito paulistano e enchendo minha carteira com todos os tipos de multas imagináveis. Quem se importa com multas estando morto, penso eu. Cruzo o largo da Batata e chego correndo na área já arborizada entre Pinheiros e Vila Madalena. Deixo o carro em faixa dupla e invado a agência de publicidade que aquela mulher trabalha.

-       Natasha!

-       Brian!?

-       Corre, não tenho muito tempo, nem para explicar, nem para viver, nem para... CALA A BOCA, SUA BICHA, DEIXA EU TERMINAR! Desculpa, vem, tem que ser agora.

Ela reúne os pertences em cima da mesa.

Pego sua mão e corremos para o carro. Abro a porta e antes de jogá-la para dentro aperto-lhe a cintura e temos nosso segundo antes do primeiro beijo. Os olhos ainda abertos e muito próximos, a respiração ofegante, as pontas dos narizes com um contato leve, quase inexistente. Aquele segundo que leva uma eternidade antes dos lábios se tocarem e as línguas enroscarem num baile onde dois dançarinos acabaram de se conhecer. E Dessa vez eles dançam bem, juntos, sempre perto.

Ela entra no carro eu faço a volta e olho para todos da agência ainda sem entender quem eu era e o que estava acontecendo. Foda-se todos. Não tenho tempo.
Quando paramos no primeiro boteco sujo que aparece, ela desce. Tomamos um conhaque com Guaraná por volta das 10h00 da manhã e quando ela aprecia o primeiro gole ela pergunta:

-       O que que tá acontecendo?

Eu abro a cerveja, aquela tal cerveja e sinto o prazer da cevada no café da manhã.

-       Sabe quando você tem um deja vu? Ou quando você tem uma outra chance pra acabar com um arrependimento da sua vida? É mais ou menos isso. Não sei de onde, mas tenho a certeza que meu fim está próximo. Então não podia deixar passar a chance de conhecer uma possível paixão, uma possível história que me faria sorrir no segundo final, ao invés de chorar arrependido

-       Você é louco, sabia?

-       Nunca fui são.

Nos beijamos mais uma vez e entramos no primeiro motel que encontramos na Marginal.

-       Quantas noite senhor?

-       Todas. Até sábado.

Sábado. O vento continua forte e eu abro os olhos mais uma vez. O chão está perto demais mas o arrependimento já não faz mais parte. Tomei aquela cerveja, fiz uma história com aquela mulher. Dou uma volta com o corpo e vejo o olhar desesperado do instrutor.

1500 pés
1300 pés
1000 pés

Ele abre o paraquedas para salvar a própria vida enquanto chora por me deixar morrer.

Faltam 5 segundos. Fecho os olhos e sinto o impacto com o chão. Tudo fica escuro e pacífico. Só sinto uma pressão no peito esquerdo.

Abro os olhos mais uma vez. É sábado de manhã e a cabeça daquela moça encontra-se sobre meu peito. A janela aberta deixa a manhã gelada. Deixo-a dormindo, abro a geladeira e tomo uma cerveja.

-       Baby, acorda.

-       Já tá na hora?

-       Já, você precisa me levar para o salto.

-       Dormiu bem?

-       Uhum, tive um sonho louco, mas dormi muito bem.

-       Tá, vem aqui me dar mais um beijo e a gente vai. Coloca aquela música pra eu acordar? Vamos comer pão de queijo antes de você ir?

-       Vamos sim. Vamos tudo.

Saímos de casa e eu tomo mais uma cerveja. Apenas por garantia. Ela me deixa e pergunta se eu volto. Balanço a cabeça com toda a certeza do mundo e a deixo partir com um beijo.



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